“Para que surja uma ciência é necessário: primeiro, que alguns indivíduos tenham algum contato com algum tipo de objeto na sua experiência real; segundo, não basta que eles tenham tido esses contatos, é preciso que esses objetos se tornem como imagens ou sinais relativamente estabilizados na consciência, a ponto de eles poderem falar dessas coisas. Isso tudo antes de aparecer a ciência. Por exemplo, quando aparece a geometria, antes de aparecer o primeiro geômetra é preciso que alguém tenha percebido que existem quadrados, triângulos, etc. Sem saber nada de geometria. Mas ele precisa poder identificar essas formas de maneira estabilizada e poder falar delas.
E você acha que o homem nasce sabendo isso? Não, isso dá um trabalho miserável ! Ou seja, um sujeito, uma geração percebeu; percebeu mas não criou os termos para aquilo. Então aquilo se perde, e a geração seguinte tem que perceber de novo. Aos poucos, se diz: foi estabilizado na linguagem, temos o nome para essa coisa, então podemos começar a falar dela. É muito tempo depois de se poder falar dela que surge a idéia de estuda-la cientificamente. Mas tudo isso depende de registros que permitam a cada geração o retorno às mesmas experiências intelectivas que permitiram o surgimento da primeira investigação. Se você não é capaz de ter as mesmas intuições que Euclides teve quando estava compondo “Os Elementos de geometria”, você não poderia entender nada da geometria de Euclides. É que ela está montada numa ordem lógica que lhe permite estudar cada teorema para você mesmo intuir as relações que ele está querendo lhe mostrar.” (gn)
E como se dá essa ordem lógica? O próprio professor Olavo, de quem retirei as palavras acima (1), lança a idéia:
“Dizemos que uma ciência progride. Por que? Porque as descobertas da geração anterior são premissas para as descobertas seguintes. Se você descobre um novo fato, esse novo fato se torna a premissa menor de um silogismo cuja premissa maior são os conhecimentos adquiridos anteriormente. É assim que a coisa vai andando, pois se você descobre um fato novo, mas não tem premissas com as quais articula-lo, você não tira conclusão nenhuma, daí a coisa não foi nem para frente nem para trás. As ciências só existem porque a progressão temporal vai sendo gradativamente montada sob a forma de uma progressão lógica.
Se o que vem antes é premissa do que vem depois, existe não apenas a relação temporal, mas uma articulação lógica. Claro que essa articulação lógica não se produz por si, que é cada novo pesquisador que, tendo descoberto alguma coisa nova, tem que articular aquilo logicamente com a anterior. Se ele não conseguir articular, das duas uma: ou o fato que ele descobriu é falso e aquilo não acontece, ou então a teoria anterior estava errada, daí ele tem que montar de outro jeito.” (gn)
Que o processo acima é uma verdade para o conhecimento científico não questionamos afinal, a própria ciência surgiu dessa constatação filosófica, que consistiu na aplicação do método com a consciência de que se estava aplicando-o. A questão que devemos nos fazer é se podemos aplicar essa mesma leitura para o conhecimento humano não exato como método para desenvolver o conhecimento em outras atividades humanas, em especial, nas atividades humanas.
Para isso, proponho ao leitor que faça a releitura do texto acima, no qual encontrará trechos que negritei na conclusão de que referidos trechos poderiam sim serem perfeitamente aplicáveis a qualquer tipo de conhecimento humano. Mais do que concluir que podemos utilizar esse processo, acredito devermos nos pautar nele para chegarmos a melhores conclusões. E lanço como fundamento desse argumento dois exemplos que julgo simbólicos:
EXEMPLO 1
Sócrates, quando nos mostrou que a beleza não era uma substância etérea mas algo que poderia recair sobre diversas substâncias diferentes, acabou nos ensinando que é possível usar a progressão lógica do conhecimento em conhecimentos que não são propriamente pertencentes aos ramos da matemática e da física (como a relação entre atributo e substância). No Capítulo VIII do Livro III do livro Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates(2), Xenofonte lança o seguinte diálogo:
“Outra vez, inquirindo-lhe [a Sócrates] Aristipo se conhecia alguma coisa bela:
___ Sim, conheço muitas coisas belas – respondeu.
___ Serão todas semelhantes?
___ Tanto quanto possível, há as que diferem essencialmente.
___ Como pode ser belo o que do belo difere?
___ Por Júpiter! Como de um bom lutador difere um bom corredor, como da beleza de um venábulo, feito para voar com força e velocidade, difere a beleza de um escudo, feito para a defensiva.”Sócrates não estava anunciando uma lei física ou uma regra matemática, mas “apenas” a a idéia de que as substâncias poderiam ter atributos e de que esses atributos não se confundiam com elas, embora só pudessem existir nelas, como viria dizer Aristóteles depois de descer o mundo das idéias de Platão para o nível de equivalência ao mundo das substâncias que referidas idéias pretendiam descrever.
Esse ensinamento foi uma das bases de uma proposta de análise dos fenômenos pela clave da Singularidade/Universalidade que só foi possível partindo do acúmulo de outros conhecimentos anteriores (o de Sócrates, neste caso), tendo sido ele: (i) muito proveitoso em seguida, para Platão e Aristóteles, tendo gerado mais conhecimento e (ii) pouco proveitoso nos Cínicos, Céticos, Epicuristas e Estóicos.
Os frutos de Aristóteles foram possíveis a partir dos frutos de Platão e assim sucessivamente. O filósofo Aristóteles, se tivesse nascido na Inglaterra daquela época, não teria existido. E muitos gregos viveram na Inglaterra daquela época em plena Grécia pelo simples fato de terem decidido pela ruptura drástica com o legado até então acumulado em lugar de sua conservação. E foram morar em barris, consolidando um importante exemplo do impacto da conservação de conhecimento para a evolução ou, no caso, do impacto de sua não conservação.
EXEMPLO 2
O Irã, país que podia se gabar até o século passado de não dever nada a Europa em termos de filosofia, na Revolução Iraniana (1979), jogou tudo isso fora para ficar basicamente com uma parte atrasada de sua religião, e hoje conta, por exemplo, com um presidente que quando fora prefeito de Teerã, dois anos antes, obrigara todos os homens da administração pública a usarem barba e camisa de manga comprida (
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2005/06/050625_perfilahmadcg.shtml) e que hoje quer “riscar Israel do mapa”, seja lá o que ele, que corre tanto com seu programa nuclear, quer dizer com isso. E isso não é novidade nessa recente história de 30 anos da República Islâmica do Irã (quem não se lembra do ataque contra judeus na Argentina em 94 coordenado pelo presidente Iraniano à época (
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/fintimes/2007/05/15/ult579u2152.jhtm)?
É notório que, ao invés de avançar, o povo iraniano recuou séculos no tempo e hoje, aqui do século XXI, sequer conseguimos entender os discursos que vêm de lá. O movimento revolucionário iraniano, liderado parcialmente da França pelo aiatolá Khomeini (
http://en.wikipedia.org/wiki/Neauphle-le-Ch%C3%A2teau), país de onde partiu para o poder no Irã (
http://en.wikipedia.org/wiki/File:Imam_Khomeini_in_Mehrabad.jpg), influenciado por livros como Lês damnés de la Terre (
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Wretched_of_the_Earth), manual revolucionário comunista, traduzido para o persa (farsi) pelo Ali Shariati (
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Wretched_of_the_Earth), um dos principais ideólogos (se não o maior) da Revolução Iraniana (
http://en.wikipedia.org/wiki/Ali_Shariati) que estudou islamismo, pasmem, com dois scholars franceses Luis Massignon (
http://en.wikipedia.org/wiki/Louis_Massignon) e Jacques Berque (
http://en.wikipedia.org/wiki/Jacques_Berque), jogou na lata de lixo uma imensidão de conhecimentos da cultura iraniana que deveriam ser conservados para que outras gerações pudessem avançar e que agora estão segregados até que a história prove empiricamente que a “não conservação” foi um ENORME erro (o que, no caso do Irã, deverá acontecer nas próximas duas gerações – quanto mais profunda a revolução, mais rápida ela acaba) e o processo evolutivo seja retomado.
E como isso poderia ser diferente? Da mesma forma que o foi para os Escolásticos, por exemplo, que mantiveram pela Igreja a religião judaica e o novo testamento juntos à filosofia grega e ao direito romano (3), o que permitiu o desenvolvimento do conhecimento adquirido até então, agregando, inclusive, grandes filósofos do Islã – São Tomás de Aquino, o maior escolástico, estudou profundamente Averrois (
http://pt.wikipedia.org/wiki/Averr%C3%B3is) e Avicena (
http://pt.wikipedia.org/wiki/Avicena), (este) por quem nutria grande admiração.
E, sendo o processo de acumulação de conhecimento um processo, como proposto por Olavo na transcrição que fiz no início do texto, por meio do qual o conhecimento novo se relaciona com o conhecimento conservado para, dialeticamente, formar uma nova síntese (evolução), podemos concluir que a conservação do conhecimento é logicamente necessária para a evolução dele, do que decorre, logicamente, ser o CONSERVADORISMO uma opção pela evolução e a REVOLUÇÃO uma opção pelo atraso, conclusão essa que, pela quantidade de exemplos históricos disponíveis, dispensaria o presente artigo.
(1) CARVALHO, Olavo de in Período Helenístico - coleção história essencial da filosofia, Aula 6, 1a edição, São Paulo, É Realizações Editora, 2006, p. 20 e 21
(2) Coleção Os Pensadores – Sócrates, 1996, Nova Cultural, p. 143
(3) RUSSELL, Bertrand in History of western philosophy, London, 2000, p. 19